27 de junho de 2010

Claude Lefort: democracia e a impossibilidade de eliminação do conflito

Crítico radical do totalitarismo, o filósofo francês Claude Lefort tem suas ideias revisitadas em publicação da Jacintha Editores. O Enigma da Democracia. O pensamento de Claude Lefort (em produção gráfica) é assinado pelo cientista político Luciano Oliveira (foto ao lado), fruto do contato direto e contínuo com a produção do intelectual francês, sob cuja orientação cursou o doutorado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris), com tese versando sobre democracia, direitos humanos e o pensamento político de esquerda no Brasil.

O também ensaísta Luciano Oliveira atualmente é professor de sociologia jurídica na Faculdade de Direito do Recife. Para antecipar as teses e discussões trazidas por O Enigma da Democracia, que conta com prefácio de Marilena Chaui, convidamos Nuno Coimbra Mesquita, cientista político e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas-Nupps/USP, para entrevistar o mais novo autor da Jacintha. E o resultado foi de tal ordem que, pela primeira vez, abrimos mão da preocupação em postar material curto e de leitura mais rápida, que nos parece mais condizente a blogs. Nossos leitores merecem ter acesso integral a tal entrevista. Ei-la aqui. Aproveitem!


Gostaria de começar pelo final. A frase que encerra o seu livro afirma ser Lefort um autor que não deve ser esquecido. Na sua visão, esse pensador francês tem tido o reconhecimento que merece? Qual a importância de resgatar o pensamento desse autor?
Não, não tem tido reconhecimento. Nem aqui nem no seu país, onde raramente é lembrado como um dos pensadores mais importantes da segunda metade do século passado. Mas cabe não esquecer que, com Castoriadis, ele foi o fundador, logo no pós-guerra, de um movimento que depois se tornou uma revista célebre, Socialismo ou Barbárie, a primeira publicação de esquerda a recusar a tese do socialismo soviético como um regime simplesmente pervertido pelo personalismo de Stalin, vendo ali, ao contrário, um regime sui generis, no qual uma nova camada social, a burocracia, tinha se tornado uma nova classe dominante. Em resumo, não era socialismo coisa nenhuma! Apesar disso, enquanto resplandeciam nomes como os de Sartre ou de autores definitivamente datados como Althusser, seu trabalho permaneceu “na sombra”. No Brasil, ele se tornou conhecido, no início dos anos 80, pela publicação de um de seus livros mais representativos, A Invenção Democrática, que foi muito lido. Como você sabe, gostamos muito de teóricos estrangeiros, de preferência europeus, para legitimar nossas opções acadêmicas. Lefort, valorizando a democracia, coube como uma luva naquele momento em que todo um movimento de defesa dos direitos humanos tinha aparecido no ambiente da esquerda. Era o ocaso da ditadura militar e precisávamos de novas orientações. Sai Althusser, entra Lefort! Depois, passou. Passou como costumam passar as modas no Brasil, sem deixar mossa nem bossa.
.....Mas uma questão às vezes me intriga: um autor como Bobbio, por exemplo, cuja obra gira em torno dos mesmos temas, está sempre sendo lido. Por quê? Uma razão possível é que o pensamento de Bobbio é um tanto convencional. O de Lefort, não. É verdade que o que ele diz em defesa da democracia pode ser subscrito por qualquer jurista liberal. Mas isso se situa num primeiro nível do seu pensamento, em que a adesão é fácil. Há, entretanto, um segundo nível, certamente mais importante, que já não é tão facilmente palatável. Começa que o seu estilo, que Marilena Chauí define como “espiralado interminável”, não ajuda muito. Depois, o significado mais profundo que ele vê numa sociedade democrática, aquela em que o povo no poder é um princípio simbólico, não real, e, mais do que isso, irrealizável (pois a “precipitação do simbólico no real” causaria a sua perda), não é nada convencional e chega a ser desconcertante.

Você sublinha que Lefort se distingue de outros autores do mainstream da filosofia francesa por sua maneira teórica de pensar. Em que consiste exatamente tal singularidade?
Se fosse escolher uma, chamaria a atenção para a hegemonia dos chamados “mestres da suspeita” (Marx, Nietzsche e Freud) no pensamento francês da segunda metade do século XX. Todos eles nos ensinaram que por trás das coisas aparentes existem outras, inconfessáveis, o que de fato explicam o que se passa no nível das aparências: o interesse da classe dominante, a vontade de potência, o inconsciente etc. Contemporaneamente, Foucault foi o nome mais importante dessa maneira de pensar. Ora, a reflexão de Lefort passa ao largo da suspeita que esses autores (dominantes também na academia brasileira, aliás) representam. Frente à realidade visível, costuma-se fazer a conhecida pergunta: “mas o que é que está por trás disso?”. Questão legítima. Mas, à força de ir ver o que está por trás das coisas, não corremos o risco de não ver o que está na nossa frente? ─ as coisas mesmas? Nisso consistiria uma singularidade lefortiana: “visar a sociedade tal qual ela é”! – é um de seus motes.
.....Só para dar um exemplo, remeto-me a um autor em cuja obra a influência de Nietzsche é explícita e a de Marx, mesmo menos evidente, ainda assim é considerável: Foucault. Consideremos o arquiconhecido Vigiar e Punir, onde o autor defende a tese de que a substituição dos suplícios por métodos menos sanguinários como a prisão não constituiria senão o subproduto de um novo tipo de sociedade, que ele chama de “disciplinar”. A obra dos reformadores penais, assim, teria como motivação um utilitarismo escondido Questão legítima, sem dúvida. Só que em nenhum instante Foucault considera a possibilidade de que os reformadores pudessem estar agindo também por um genuíno impulso de sensibilidade humana ─ o que, claro, não exclui a motivação utilitária. Ora, uma tal maneira de pensar termina suprimindo um dos aspectos mais cruciais dessa história: a coisa mesma ─ ou seja, a crueldade inerente à cena de um corpo sendo queimado ou rompido em pedaços ainda vivo! O que, em primeiro lugar, chocaria o próprio Foucault, um incansável militante dos direitos humanos...

Apesar de Lefort defender o regime democrático em suas formas institucionais – ou procedimentais –, tal defesa também apresenta uma perspectiva nada convencional. Qual seria essa contribuição de Lefort?
Quando falamos nas formas institucionais da política nos países democráticos – que Lefort obviamente defende –, estamos, sem notar, diante de um fenômeno interessante: essas sociedades circunscrevem um domínio institucional que chamamos de a política, onde se exerce o poder no sentido estrito do termo. Mas o que existe de mais interessante na democracia é que esse movimento de circunscrição é ao mesmo tempo um movimento de emancipação de outros domínios, que Lefort genericamente chama de lei e de saber, e que escapam à sua tutela. Isso constituiria o princípio político dessas sociedades, na medida em que é político o gesto que defende essas esferas das interferências indevidas da política no sentido convencional do termo, percebe? Dito em palavras mais simples, escapam à sua tutela princípios jurídicos, modos de pensar e de viver discordantes, o “livre exame” que está na base da pesquisa científica etc. Para usar seus termos, ocorre nas sociedades democráticas um “desintrincamento” entre essas esferas, confundidas nas sociedades do ancien régime na pessoa do Rei, cujo corpo místico encarnava a sociedade inteira e “intrincava” na sua pessoa esses vários domínios. Ora, com a “revolução democrática”, o Rei é substituído pelo Povo. Mas o que é o Povo? É uma abstração. Não tem corpo, não tem uma única vontade etc. Aí se instaura o que conhecemos como democracia, um regime em que, diferentemente do tempo do rei, inaugura-se uma discussão, que é sem fim, sobre o que é legítimo e o que não é. Ou seja, instaura-se a legitimidade do próprio conflito! Isso não é um fenômeno sempre portador de boas novas, daí a angústia que esse regime traz consigo. O totalitarismo, no caso, seria uma tentativa de reverter o processo, estabelecendo um corpo para o indefinido Povo. No caso do nazismo, foi a “raça ariana”; no caso do comunismo, a “classe proletária”. Os resultados de tudo isso, todos conhecemos...

Lefort diferencia a política e o político. Como você expõe, as pessoas, em geral, são indiferentes à primeira, por conta da corrupção, demagogia e mediocridade. Entretanto, isso não significaria necessariamente o desprestígio da democracia em si. Contudo, não existiria o risco dessa descrença em relação à ‘a política’, a longo prazo, levar à tentação autoritária?
Sem dúvida, e sobre esse perigo ele adverte constantemente. O seu último livro, La Complication, não traduzido entre nós, trata incisivamente disso, ao lembrar que, se o comunismo está morto, as questões que ele levanta não naufragaram junto. Entre outras razões porque no mundo do começo do século XXI a insegurança dos indivíduos, sob o influxo desagregador da globalização, recrudesce. Nessas condições, é sempre possível a gestação de um novo “ovo da serpente”. É quando surge a tentação de uma identidade substancial, de uma sociedade liberada da divisão e, assim, capaz de livrar as pessoas da incerteza. A democracia, nesse sentido, porta consigo uma fragilidade substancial: nela a sociedade tem de suportar o fardo da indeterminação. Tal indeterminação aparece sob diversas formas e em diversos lugares. Um dos exemplos mais controvertidos desse traço essencial da democracia é o fato de que se trata, como diz Lefort, de “um regime fundado na legitimidade de um debate sobre o legítimo e o ilegítimo – debate necessariamente sem fiador e sem termo”. Só que essa ausência de fiador e de termo é angustiante. No limite, insuportável, pois ela cauciona de certa forma a injustiça social. Lefort tem plena consciência dos riscos e das cobranças a que sua concepção de democracia está exposta. Mas, pensador da indeterminação por excelência, Lefort prefere continuar suspenso nas próprias dúvidas a ceder à facilidade de dar uma resposta que satisfaça o leitor inseguro e ávido de certezas – que ele próprio não tem. Mas é importante ressaltar que Lefort tem um olhar bastante acurado sobre a realidade para perceber que a divisão social é um fenômeno bem mais vasto do que o conflito entre capital e trabalho, e que não se refere apenas à divisão entre classes, para usar um termo marxista. O totalitarismo, como a experiência histórica demonstrou, ao definir-se como uno stato totalitario – a expressão remonta ao fascismo italiano –, a pretexto de acabar com o conflito entre classes, redunda em aniquilar toda a diversidade de que a sociedade é feita.

Em sua interpretação, Lefort encararia o mundo como um problema sem solução, sem que isso signifique não haver soluções para os problemas do mundo. Poderíamos dizer, de outra forma, que encarar o mundo como um problema com solução está na esfera das utopias, o que degeneraria fatalmente no totalitarismo, enquanto a perspectiva da solução dos problemas do mundo se materializa na democracia como sede da ambição melhorista?
Sua pergunta já contém uma boa resposta. Teria muito pouco a lhe acrescentar. Devo sublinhar, até porque não tenho o direito de pôr na sua boca o que ele nunca disse, que a fórmula do mundo como problema sem solução não é de Lefort, embora acreditando que ele a subscrevesse. Desenvolvi-a no contato com sua obra, que fala constantemente na impossibilidade de eliminação do conflito, no conflito como o elemento que irriga a dinâmica democrática, na invenção permanente de novos direitos decorrente dessa dinâmica etc. etc. E que, nesse caso, “apaziguar” a sociedade só será uma operação possível se ao mesmo tempo destruirmos a democracia, que existe justamente em função dos conflitos que ela não elimina, mas apenas agencia. Lógico que ela resolve problemas sociais. Mas, imediatamente, e muitas vezes como decorrência da própria solução, surgem novos problemas – e assim sem fim. A tentação totalitária, uma preocupação sempre presente nos seus escritos, é uma tentativa de apaziguamento que leva ao inferno dos campos de concentração e à paz dos cemitérios.

Foto do autor: Lillian Arruda

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